quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Breivik e a inimputabilidade

os meus colegas chamados a perícia psiquiátrica no caso Anders Behring Breivik, autor confesso da chacina de Utoeia, terão concluído que o examinado sofre de "esquizofrenia paranóide" e deve ser considerado inimputável, isto é, não deve ser sujeito a sanção criminal, antes deve ser submetido a tratamento e medidas de segurança de natureza psiquiátrica. e terão concluído bem, em minha opinião, não necessariamente apenas por critérios médicos e, especificamente, psiquiátricos.
assim, para que alguém seja considerado inimputável é necessário que ou esteja impedido de fazer a distinção entre o que é lícito e o que é ilícito, ou que, podendo fazê-la, esteja de tal modo privado de autodeterminação que não possa agir em conformidade com essa distinção fundamental. por exemplo, um delirante de ciúmes pode ter acumulado todo um rol de pseudoevidências a respeito da alegada "infidelidade" da sua esposa, mas sabe que lhe é interdito matá-la e que, com toda a certeza, se o fizer, irá ser preso, levado a tribunal e condenado por homicídio. porém, em muitos casos, o delirante ciumento uxoricida acaba decidindo: "dou cabo da minha vida, mas ao menos resolvo o problema de raiz". e este não é, certamente, um caso de inimputabilidade.
já no psicótico que tenha um delírio e sensações de influência, que ouve vozes com força de ordens a que seja impossível resistir, é mais claro que aquilo que faça sob a ação dessas ordens seja responsabilidade dessas ordens e não dele. será então um caso de inimputabilidade, que a recear-se o perigo de reincidência, exige medidas de segurança e tratamento como forma de proteger a sociedade e de o proteger a ele próprio.
porém, não basta ser psicótico, nem "esquizofrénico paranóide" para se reconhecer, sem mais, o estatuto de inimputável. é preciso que essa "psicose", que essa "esquizofrenia paranóide", retire ao seu portador a liberdade de dizer sim ou não às entidades que atormentam ou dão forma à sua imaginação.

mas Breivik levanta questões muito mais complexas e sérias. diz-se que o homem é de extrema direita, um neonazi, alegadamente membro de organizações, umas de natureza política, outras de natureza social. sabe-se que desenvolveu uma elaborada teoria sobre o mundo moderno, a que, consequentemente, seria necessário dar uma resposta violenta. e, ao que se julga saber, se é certo que é membro de organizações extremistas, não estará sozinho nessa forma de diagnóstico e tratamento dos males da sociedade moderna.
levar a sério a sua elaboração lógica, seja ela solitária ou compartilhada, seria reconhecer-lhe caráter político, o que daria ao julgamento um perigoso tom de julgamento político. e reconheceria ao réu o estatuto de preso político. ainda que autor confesso de crimes que facilmente cabem no conceito de crimes contra a Humanidade, seria um preso político. quer dizer, um criminoso da pior espécie para uns, um herói para outros.
ir por aqui seria cair numa terrível armadilha.
não sei se os meus colegas pensaram também nisso, ou se agiram apenas e só baseados na constatação da psicose "esquizofrenia paranóide"; e se além das ideias (delirantes, suponho) encontraram também aquela falta de liberdade essencial à imputação de crime que consiste em estar sob a influência de uma força imperativa exterior ao "eu". acredito que sim.
mas, seja como for, ao ser considerado inimputável (presumo que perigoso), ainda que fique um desagradável travo de injustiça para quem esteja mais interessado no espetáculo da punição do que nas suas consequências, o réu Breivik sofre uma desacreditação perpétua das suas teorias e será submetido a um controle vitalício das suas atividades.
e isto é seguramente melhor que ser preso e condenado pela prática de um crime hediondo sob a alçada de uma mente livre e esclarecida, e portanto imputável. e o raciocínio vale por igual para uma eventual pena de morte. é que às vezes os mortos continuam a falar.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

estamos cada vez mais inteligentes?

um estudo canadiano recente afirma que o ser humano está cada vez mais inteligente. tenho as minhas dúvidas. sobretudo acho essa afirmação muito arriscada. se excluirmos o recurso ao espiritismo, não vejo como se compara o QI do meu tataravô com o do meu trisavô, do meu bisavô, do meu avô, do meu pai e o meu. o único que está disponível é o meu. por outro lado, de todos os grandes génios da Humanidade não conheço um único que tivesse um filho e um neto mais genial que ele. outros nem filhos tiveram. os testes de QI medem o quê: a inteligência ou a conformidade com o padrão tecnológico e de informação disponível no momento? a inferência de que as gerações respondem cada vez melhor a testes de QI cada vez mais recentes, logo são mais inteligentes, é tão válida como a inferência de que as gerações responderiam cada vez pior a testes de inteligência cada vez mais antigos, logo são mais estúpidas. possivelmente, um arquiteto das pirâmides ficaria largamente confuso na presença de um veículo espacial. mas o homem moderno também fica abismado ante a construção das pirâmides egípcias.

é verdade, estamos a ficar cada vez mais inteligentes. e eu estou a ficar tão inteligente que já nem me consigo compreender.



segunda-feira, 10 de outubro de 2011

somos todos contra os ricos

imaginemos um país de 10 milhões de habitantes em que 5 milhões são muito pobres. um rico dos ricos resolve doar 1 milhão de euros, a dividir por todos os pobres do país. cada um dos pobrezinhos receberia, portanto, 20 cêntimos. imaginamos que havia 10 ricos dos ricos, e não apenas um. e imaginemos que tinham, cada um, 1 milhão para distribuir pelos 5 milhões de pobres. cada pobre receberia, portanto, 2 euros. imaginemos que não eram 10, mas 1000. receberia cada pobre 200 euros. mas se fossem 10 000 ricos dos ricos, cada pobre receberia, com o mesmo contributo individual de cada rico dos ricos, 2000 euros.
agora imaginemos tudo ao contrário: que o país tinha 10 mil ricos dos ricos, mas passou a ter apenas 1000 e depois apenas 100 e depois apenas 10 e, finalmente, apenas 1. até serem todos pobres muito pobres. orgulhosamente iguais.

domingo, 15 de maio de 2011

liberdade sexual?

eu estava convencido de que vivíamos numa sociedade sexualmente adulta, livre e despreconceituada. eu estava convencido até de que o moralismo era uma coisa do tempo das religiões monoteístas. até me convencia de que a Inquisição e a Polícia de Costumes tinham sido extintas. nada disso: acusa-se um homem de violação e pronto. queima-se. vai pró inferno. o resultado do processo é irrelevante. a coisa faz efeito por si mesma, a partir do momento em que é dita. hipócritas.

quinta-feira, 24 de março de 2011

algumas reflexões sobre o simbolismo das pontes

a ponte é um dos símbolos mais difundidos no mundo. ela é a passagem da terra ao céu, do estado humano aos supra-humanos, da contingência à imortalidade, do mundo sensível ao supra-sensível. é um símbolo de passagem, uma passagem perigosa como toda a viagem iniciática. a ponte representa o que é representável também pela barca do inferno. assim, em algumas tradições fala-se da travessia da ponte que leva ao paraíso passando por cima do inferno. é uma ponte “mais fina que um cabelo e mais cortante que um sabre”, a ponte da espada, das tradições celtas. só os eleitos a atravessarão, com mais ou menos dificuldade, de acordo com a qualidade das ações que praticaram e a força da sua fé. alguns farão a travessia em cem anos, outros em mil, consoante a pureza das suas vidas. mas os que não tem merecimento serão precipitados no abismo.

segundo a mitologia celta, um rei deitou-se atravessado no rio, de uma margem à outra, para que o exército pudesse passar por cima do seu corpo. porque, diz o aforismo, “aquele que é chefe que seja ponte”. este mito foi conservado aqui, na velha Galécia, na lenda da travessia do rio Lima pelo conquistador romano, o general Décimo Júnio Bruto, “O Galaico”. o nome do rio, “límia” na fala autóctone, era para os romanos percebido como o “limite”, algo que não podia ser transposto sem graves perigos. tal como na lenda grega do rio Letes, quem o atravessasse perderia a memória. perante a recusa dos soldados em transpor o rio, receosos de perderem a memória da sua vida, do seu passado e a sua identidade, Décimo Júnio Bruto passa para o lado de lá e chama pelo nome os seus soldados, um por um – provando, assim, que não só não tinha perdido a memória nem a identidade pessoal como subia de grau na afirmação da sua liderança.

todas as tradições, ocidentais e orientais, confirmam o simbolismo da ponte como lugar de passagem e de prova. um lugar mais propriamente de entrada do que de saída, já que a própria ponte é um universo simbólico em si mesmo, do qual se sai depois de superadas as provas que implica. aquele que entra não é o mesmo que sai, porque sai mudado, novo. por isso mesmo se diz “Ponte das Três Entradas” e não “ponte das três saídas”. a ponte representa a transição de um estado interior para outro, a saída entre dois desejos em conflito. é um passo decisivo. evitar a passagem não resolve nada, há que atravessá-la, com a liberdade de pensar que toda a superação implica. sem essa liberdade de pensar é impossível transpor a ponte que conduz da escravidão à liberdade, desta Babilónia terrestre onde somos estrangeiros à Jerusalém celeste de que aspiramos a ser cidadãos perfeitos.

na ponte há duas dimensões: a horizontal e a vertical. funciona como um “eixo do mundo”. a ponte de Chaves é um bom exemplo desse eixo do mundo: tem uma coluna onde consta o nome de todas as tribos galaicas por ela servidas e que para ela contribuíram com o trabalho dos seus filhos. ou seja, o mundo de que ela é o centro. esta dimensão vertical é reconhecida por todas as tradições antigas. a ponte une não só as duas margens do rio ou do abismo, mas também o céu e a terra. por isso, muitas pontes medievais, sobretudo românicas, tem um perfil em lombo de asno, de duplo pendente, formando um ângulo no seu arco médio. este desenho é propositado, pois que essa estrutura não só não é necessária, tendo em conta o caudal do rio que cruza, como ainda acrescenta problemas arquitetónicos “desnecessários” e complexos. a sua justificação não é, pois, de natureza prática, mas sim espiritual. se repararmos, também as pontes modernas investem muito na dimensão vertical, a dizer que, apesar de tudo, os mestres construtores continuam vivos.

em França, na Espanha e em Portugal são conhecidas as “pontes do diabo” e as suas lendas. são pontes construídas em lugares de extrema dificuldade, por cima de abismos aparentemente inacessíveis e intransponíveis, como a nossa ponte da Misarela. essas lendas põem em confronto os poderes de deus e do diabo e os seus respetivos seguidores. o diabo, o demiurgo, aquele que faz a partir da matéria pré-existente, o único capaz de erguer semelhantes estruturas no entendimento popular, exige o seu quinhão: o sacrifício do primeiro que a atravessar. estas lendas tentam explicar não só a própria construção dessas pontes materiais aparentemente impossíveis, como do ponto de vista simbólico indicam a angústia que suscita a passagem difícil sobre um lugar perigoso. a ponte coloca o homem numa via estreita, perante a qual ele se defronta com a obrigação de escolher. escolha que o pode perder mas também salvar. escolha que implica liberdade de pensar, disponibilidade para correr riscos.

do ponto de vista da psicologia, o simbolismo da ponte traduz a ligação do consciente ao inconsciente, as provas que cada um de nós tem que superar no processo de individuação e de autodesenvolvimento. a ponte não é um mero lugar de travessia, pois deve ser abordada através de ritos de passagem bem determinados. por isso, muitas pontes medievais são precedidas de capelas ou nichos, de alminhas, de uma torre, de uma porta ou de advertências que remetem a passagem física para o mundo do sagrado. muitas, ainda, sem que nada de prático o justifique, estão construídas em escada, tornando a passagem deliberadamente mais difícil e lenta, convidando à reflexão.

os imperadores romanos tinham o título de Sumo Pontífice, título que, a partir do século IV, passou a ser o dos papas. “Sumo Pontífice”, isto é, “o mais alto dos construtores de pontes”, aquele que liga este mundo e os outros, aquele que tem, pois, a mais alta função religiosa (de “re-ligar”).

hoje em dia, o aspeto utilitário da ponte dificulta o reconhecimento do seu caráter simbólico e sagrado. além disso, ela é um símbolo de construtores e, por isso, a sua elaboração mental e filosófica é de caráter esotérico, estando vedada aos que não tem qualificação para isso. as próprias pontes modernas, apesar do materialismo reinante, tenhem uma forte componente artística que vai para muito para além da sua estrita função utilitária.

quando só o aspeto utilitário permanece e se perde o seu simbolismo, a ponte torna-se um mero objeto, sem outro sentido nem função que a da própria estrada de que faz parte. deixa de merecer atenção, meditação e reverência. é simplesmente usada. mas ela conserva o seu duplo aspeto: benéfico e maléfico. por má construção ou por desleixo, pode cair fragorosamente, levando consigo as suas vítimas, os seus sacrificados.

pois bem: há as pontes-símbolo, que em si contêm verdades e saberes. há as pontes que por falta de simbolismo são símbolo de um mundo sem símbolos - um mundo onde sobejam as pontes aquáticas, terrestres e aéreas. mas há também as outras pontes. vivemos até num mundo onde essas pontes faltam: as pontes da fraternidade e do amor. as pontes que é urgente construir entre nós e nós, e entre nós e os outros. sob pena de vivermos entre abismos.



figura: ponte da Misarela.
in: www.serra-do-geres.com