sábado, 18 de abril de 2009

reclamar do produto ou a sociedade de consumo

soube-se há dias que um casal adotante devolveu a criança adotada, por incompatibilidade com o cachorro da família. já tínhamos visto outros desenvolvimentos do paradigma existencial do nosso tempo: comprar e vender crianças por inteiro ou às peças. mas devolver o produto, dentro ou fora dos prazos, por insatisfação do cliente é a primeira vez.
a falta de respeito pela vida e por tudo o que é humano estende-se para além dos limites do imaginável.
e o materialismo ressequido, puro e simples, tudo transforma em coisa.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

abade Faria (1756-1819)

José Custódio de Faria, filho de Caetano Vitorino de Faria e de Rosa Maria de Sousa, nasceu em Candolim, concelho de Bardês, distrito de Goa, em 31 de maio de 1756[1] , de uma linhagem brâmane Sinai ou Shenoi, (Xenoi), da sub-casta sarawsat. os Farias de Colvale, aldeia natal do pai de José Custódio, descendiam de um brâmane saraswat[2], Antu ou Ananta Sinai, sacerdote e patil de Colvale no séc. XVI, o qual se convertera ao cristianismo adotando o apelido português de Faria. mas a linhagem brâmane e seu conteúdo social e funcional continuaram vivos na tradição familiar.
na Goa católica persistiram três castas: os brâmanes ou brahmin, os chaddo (ou kshatriya) e os sudra ou xudra. fora do sistema de castas há os kunbi, aborígenes (servos e trabalhadores sem terra), que estão abaixo dos shudra, mas acima dos dalit. em Goa o sistema de castas revelou uma persistência maior do que noutras tradições hindus, estando os preconceitos de casta profundamente enraizados na mentalidade e no comportamento social, por vezes traduzidos em poderosas intrigas e rivalidades. a ordem cristã, igualitária, teve que se adaptar à estrutura social hindu, de forma que a casta continuou a condicionar o estatuto social e a liberdade de movimentos. sacerdotes, teólogos e filósofos provinham, sobretudo, da casta brâmane, assim como os juristas, os professores, os académicos e os educadores em geral. no seu livro, José Custódio Faria, ao consignar os seus títulos, poria em primeiro lugar a sua condição de brâmane: “Brahmine, Docteur en Théologie et en Philosophie, ex-Professeur de Philosophie à l’ Université de France, etc”.
os brâmanes goeses forneciam o clero à Igreja Católica local, mas sentiam como uma ofensa a relutância das autoridades civis e religiosas em colocá-los nas posições mais elevadas da hierarquia política e eclesiástica, sobretudo quando os preteriam em favor de castas rivais de menor categoria. diz-se que às ambições de José Custódio de Faria (ou, talvez melhor, de seu pai) não era estranho o desejo de lhe fosse atribuída a mitra.
seu pai, natural de Colvale, a norte do mesmo concelho de Bardês, cedo enveredara pelos estudos eclesiásticos, completou a Teologia e chegou a receber ordens menores. mas não foi mais longe, então, por se ter enamorado da filha da abastada família "Quencró," de Condolim, com quem viria a casar. sete anos depois, o casamento rompe e Caetano Faria regressa à casa paterna, levando o filho consigo. com as devida dispensas canónicas, anula o casamento, retoma a carreira sacerdotal e torna-se padre. por seu turno, Rosa Maria ingressa no convento goês de Santa Mónica em 1764, sob o nome de Rosa de Santa Maria, vindo a ser prioresa de véu preto, um privilégio de mulheres de raça branca. daí o dizer-se que o Abade Faria era um padre filho de um padre e de uma freira.
em 1771, com 15 anos de idade, ruma a Lisboa na companhia do pai, tendo pouco depois seguido para Roma, onde estudou no Colégio da Propaganda Fide. em 12 de março de 1780 é ordenado padre. doutora-se em Filosofia e Teologia pela Universidade de Roma e regressa a Portugal, onde ganha fama de pregador eloquente[3].
em 1787, ele e seu pai terão estado implicados na “Conjuração dos Pintos”[4] contra a administração portuguesa, que a reprimiu com dureza. moveria os revoltosos o orgulho de casta, a luta por lugares cimeiros na administração política e religiosa de Goa, aquilo a que Egas Moniz, de acordo com J. H. da Cunha Rivara, chamava nativismo, ou seja, o desejo de ver substituídos por nativos de Goa os titulares de altos cargos políticos e religiosos no território. bem entendido, não se tratava de quaisquer “nativos”, mas sim de “nativos” brâmanes. outros atribuem a conjura a uma intriga de castas rivais, isto é, entre charodós, de casta sudra, e brâmanes, ambas pretendentes aos mais elevados postos da hierarquia eclesiástica e civil de Goa[5].
em 1788 vai para Paris, onde fixa residência na Rua Ponceau, nº 49[6]. no “13 do Vindimário”, em 1795, lidera uma secção de um dos batalhões que combateram a Convenção Nacional Francesa. desde a sua chegada a Paris adquire relações privilegiadas com altas personalidades da política, sobretudo da aristocracia. assim conheceu Armand de Chastenet, marquês de Puységur, seu companheiro de armas contra a Convenção e um dos fundadores do hipnotismo europeu e ocidental. há quem diga que Faria já trazia consigo muitos conhecimentos de hipnotismo, há muito conhecido e praticado nos templos da Índia. em França, tratou apenas de desenvolver, aplicar, enquadrar e validar esse velho saber.
tal como o seu mestre Mesmer, Puységur acreditava que um fluído se transferia do magnetizador para o magnetizado. Porém, chamava a esse fluído vontade, que se transmitia das mãos do hipnotizador para o corpo do sujeito.
para Faria, o sono hipnótico não é devido à intervenção de quaisquer fluídos ou poderes especiais dos operadores, mas, simplesmente, à suscetibilidade dos indivíduos sobre os quais intervém. neste tipo de fenómenos tudo dependia de causas naturais, sem intervenção de quaisquer forças misteriosas, fluídos sobrenaturais ou realidades metapsíquicas. contra as teorias fluídicas de Mesmer e Puységur, Faria escreve: “ não posso conceber como a espécie humana foi buscar a causa deste fenómeno a uma celha ou panela (baquet), a uma vontade externa, a um fluído magnético, a um calor humano, a mil outras extravagâncias deste género, quando esta espécie de sono é comum à natureza humana, através dos sonhos, e a todos os indivíduos que se levantam, andam ou falam durante o sono”.
Faria designou a hipnose por sonho lúcido, atribuindo-lhe:
- uma causa predisponente: a sugestionabilidade ou impressionabilidade do sujeito;
- uma causa imediata: a concentração (o sujeito não deve ser distraído por ruídos, estar inquieto ou preocupado, e apenas se deve ligar à ideia de sono). por isso, Faria designava o hipnotizador por "concentrador" e o hipnotizado por "concentrado";
- uma causa ocasional - a ordem dada pelo hipnotizador para dormir.

usou a hipnose para produzir sugestões hipnóticas (anestesias, paralisias, alucinações, cura de sintomas psicossomáticos) e sugestões pós-hipnóticas (ordens que o sujeito cumprirá ao acordar, decorrido o tempo fixado pelo hipnotizador).
os fenómenos hipnóticos despertaram a descoberta do inconsciente. por outro lado mostraram a existência da Censura, na medida em que o hipnotizado se mostra incapaz de cumprir sugestões contrárias à sua ética pessoal – gerando o que se pode designar como neurose experimental: um sintoma, por exemplo um tremor de mãos, impede-o de pôr a sugestão em prática.
sabe-se que a atividade cerebral, a respiração, e o ritmo cardíaco da pessoa hipnotizada são semelhantes ao estado de vigília normal, constituindo, pois, a hipnose uma variação do estado de vigília, um estado de atenção concentrada. para que ocorra o estado hipnótico é necessária a vontade de colaboração do paciente e, além disso, nada pode ser feito contra os princípios e moral do paciente.
a este respeito, Luís Santa-Rita Vas [7] conta um episódio curioso. como muitos dos seus sucessores, Faria era por vezes tentado a ir longe demais. e certo dia tentou demonstrar que era capaz de mesmerizar um canário, ordenando-lhe que morresse. Chateaubriand, testemunha do caso, conta nas Memórias de Além-Túmulo, o inesperado resultado: o abade entrou num transe auto-induzido, no qual, inversamente, era o canário que queria que ele morresse. nenhum deles morreu e Faria sobreviveu ao transe sem efeitos secundários...
as descobertas de Faria viriam a ter um papel fundamental no desenvolvimento das psicoterapias e da teoria da catarse, constituindo a base dos estudos sobre a histeria e um dos pilares fundamentais da Psicanálise.
em 1812 é eleito membro da Societé de Médicine, de Marselha, a qual, em 1848, por fusão com a Société Académique, formaria a Société de Médicine de Marseille.

em 20 de setembro de 1819, aos 64 anos de idade, morre na maior das misérias, na Rue des Orties nº 4, José Custódio Faria, professor de Filosofia. Daniel Gelásio Dalgado, considerado a maior autoridade entre os biógrafos do Abade Faria, conta, na sua Mémoire sur la Vie de l’ Abbé Faria: explication de la charmante légende du Château d’ If dans le roman ‘Monte Cristo’, que tinha ido visitar o nº 7 da Rue de Ponceau, em Paris, primeira morada conhecida do Abade Faria. ao conversar com o porteiro do prédio, Dalgado falou-lhe do ilustre compatriota alto e esguio que vivera naquela casa por volta de 1792. o porteiro nem queria acreditar que o Abade Faria alguma tivesse tido uma existência real, fazendo como fazia dele a imagem ficcional do Monge Louco, de Dumas.

por diploma legislativo de 2 de abril de 1959, o hospital psiquiátrico do Altinho, em Pangim, passou a designar-se Hospital Abade Faria.

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notas:

[1] outros indicam 30 de maio. no entanto, em Candolim, a lápide indicativa do local do seu nascimento informa:


Local onde nasceu
aos 31 de maio de 1756
o genial criador
do
hipnotismo científico
Pe. José Custódio Faria
conhecido no mundo culto por
Abade Faria
”.


[2] os brâmanes saraswat são oriundos do norte da Índia. segundo as escrituras hindus, habitariam inicialmente a região do mítico rio Saraswat. espalharam-se por várias regiões da Índia, sobretudo o oeste e o sudoeste. Goa é uma das regiões onde se fixaram. dentro da sub-casta saraswat, os Sinai ou Xenoi são os mais ilustrados, estando ligados a atividades ou funções de natureza docente, administrativa, religiosa, etc.
[3] não é a opinião de Egas Moniz, que escreve: “não o fadara a natureza para sugestionar as multidões com rasgos de eloquência”. e transcreve o episódio, talvez mais lendário do que histórico, em que Dalgado relata as peripécias do primeiro sermão do Pe. Custódio: atrapalhado diante das altíssimas personalidades da Corte, sentiu varrer-se-lhe o discurso. o Pe. Caetano, seu pai, sentindo-o em graves dificuldades, acalmou-o, falando-lhe em Concanim: "kator re bahji!", uma frase idiomática que pode ser entendida como “são legumes, corta-os!”, ou como "vamos pra frente, toca a andar!". incitado com estas palavras de seu pai, José Custódio superou então os seus receios e prosseguiu a sua prédica eloquentemente. e há quem diga que ficou impressionado com o facto de uma mera frase de seu pai lhe ter mudado tão radicalmente o seu estado mental.
[4] os Farias estiveram envolvidos na procura do apoio da França a Tipu Sultão, o “Tigre de Mysore“ (1750-1799), tentando estabelecer uma aliança indo-francesa contra o domínio inglês e, por arrastamento, o domínio português em Goa. Tipu Sultão tinha aderido às ideias liberais da Revolução Francesa, tornou-se membro do Clube Jacobino e designava-se a si mesmo como “o cidadão Tipu”. mas esta contradição com as posições aristocráticas dos Faria não parece incomodar os biógrafos.
[5] Ângela Barreto Xavier, em A Invenção de Goa, escreve: “a partir do século XVIII, o grupo que se autodenominava Charodó [de casta xudra], estava a adquirir competências inesperadas, posicionando-se na vizinhança dos interesses da coroa portuguesa. não são bem claras ainda as razões subjacentes a esta aproximação, mas é inquestionável que a ela correspondeu a relativização do poder daqueles que se designavam por brâmanes”.
[6] o número do prédio alterou-se com o tempo. em 1925, quando Egas Moniz escreve “O Padre Faria na História do Hipnotismo”, o prédio tinha o nº 7.
[7] Luis S.-R. Vas, Abbe Faria: Pictorial Biography, web:
http://www.abbefaria.com/Pictorial%20Biography%20Aug%2024.htm,
acedido em 17-04-2011./


quarta-feira, 8 de abril de 2009

lobo na pele de cordeiro

a associação nacional de farmácias tem muita pena dos portugueses carenciados, tadinhos. numa campanha sem precedentes, propõe beneficiar, de uma só vez, os compradores de medicamentos e o Estado que os comparticipa, alterando a prescrição dos marotos dos médicos. esta ação de beneficência tem por móbil a venda de genéricos, mais baratos, em vez de medicamentos de marca, mais caros.
tudo bem, é claro. bom, não é tão claro assim.
a atividade de produção de medicamentos genéricos é um processo de parasitismo legal, tolerável até ao limite que não mate o organismo parasitado. baseia-se na produção de medicamentos com mais de dez anos de comercialização e com patente caducada.
a produção de fármacos novos é um processo lento, dispendioso, que mobiliza recursos e mentes muito qualificadas. a produção de cópias, sem despesas de investimento e sem direitos de autoria, rouba à indústria de fármacos de origem a capacidade e os meios de criação de novos medicamentos. a menos que os preços dos medicamentos novos suba em espiral. é o que se passa, hoje em dia: medicamentos genéricos cada vez mais baratos, medicamentos novos cada vez mais caros.
a indústria parasita de genéricos tem crescido como cogumelos, melhor, como uma praga. são sete cães a um osso. certamente, uma tal apetência só é possível porque os médicos prescrevem genéricos, caso contrário não haveria tanta proliferação de comensais. e de entre a chusma de parasitas, assoma agora a associação nacional de farmácias, que acha melhor parasitar os médicos também, roubar-lhes a patente da prescrição e traduzir a receita pra genéricos. e que marca de genéricos?
genéricos, sim, mas o que está por detrás da voracidade disfarçada de misericórdia é que há empresas de genéricos controladas pela associação nacional de farmácias. é, pois, uma predação disfarçada de caridade. um lobo disfarçado de cordeiro.