domingo, 18 de março de 2007

os castros (1)

como diria Martins Sarmento, meu conterrâneo ilustre, tamém eu nasci entre castros. a concha do Ave, na região de Guimarães é um manancial deles: em cima de cada elevação, assinalados quase sempre por capelas de invocação estranha: "Santa Tecla", "Senhoras do Monte", "S. Miguel-o-Anjo", "Santa Marta das Cortiças", "Senhora da Penha", "Senhora da Lapa", "S. Bento das Pêras". em certo dia do ano, já sem saberem bem porquê, ainda hoje lá vão em romaria os que tenhem dentro cousa que ver co aquelas aldeias mortas.
de outros não ficou invocação, talvez porque as suas gentes tenham sido chacinadas, expulsas, dispersas ou escravizadas: nas citânias de Briteiros, de Sabroso e de Sanfins não resta qualquer construção religiosa em actividade, que leve as populações circunvizinhas a fazer-lhes visita anual como é de lei fazer aos que passaram por cá antes de nós. aí, vão os turistas, os que, mais do que antepassados, vêm nos antigos habitantes dos castros uma gente atrasada, bárbara, que se alimentava de coisas que não nos alembra dar ao cão.
uma gente que inventou a filigrana de oiro. que cantava, dançava e contava histórias. gente que caçava e pescava, pastoreava e lavrava, fiava e tecia. ria e chorava. gente igualzinha a nós.

situados em pontos altos, visíveis uns dos outros, os castros faziam circular rapidamente as novidades importantes. ainda hoje esses locais são pontos-chave no sistema de comunicações: praticamente não há um só que não tenha uma ou duas antenas, da televisão, da rádio, das redes celulares. o expoente do que digo é o Monte da Tegra, ou de Santa Tecla, no concelho galego d'A Guarda. de tal maneira assim é, que eu suspeito de que esses lugares, mais do que pela sua altitude ou qualquer outra razão, deviam ser escolhidos pela facilidade com que deles se emitia ou recebia as ondas electromagnéticas. ou, se eu disser de outra maneira, pela comunicabilidade visual que ofereciam entre si.
pelo menos, assim o sugerem certas lendas ligadas a estes montes, como a lenda das sete irmãs, ou das sete senhoras. esta é uma delas.



sexta-feira, 16 de março de 2007

um caso atrás d' outro



há semanas atrás, fomos bombardeados coma campanha em favor de uns ditos pais adotivos de uma criança de 4 anos. as cabeças bem-pensantes do meu país correram a assinar um papel para libertar um homem. preso por ter em seu poder uma criança ao arrepio da lei . e recusar-se a entregá-la às autoridades.
a coisa conta-se assim: uma senhora namorou um rapaz e engravidou. não sendo namoro pra durar, que até já tinha acabado, nem tendo de que viver quanto mais sustentar um filho, a mulher achou melhor, sendo solteira e sem pai assumido para a criança, dar o rebento a um casal que o queria. só que, por uma razão ou por outra, os novos "pais" se esqueceram de cumprir os requisitos. ou seja, passaram por cima dessas lérias da adoção legal. entretanto, o indigitado pai propriamente dito, até aí incrédulo quanto à paternidade, rende-se ao teste do ADN, que o deu por autor daquela vida. aí o moço acha que, se é pai, quer ser pai até ao fim. e reinvindica a criança. aqui d'el-rei! a criança já está habituada àqueles pais, será uma violência devolvê-la a quem de direito. neste caso, ao pai biológico. que a quer criar.
o abaixo-assinado passou-me pelas mãos. de pé atrás, não o assinei. parece que estava a adivinhá-la...

...acontece agora que:

uma senhora ilude o marido-viajante durante nove meses, dizendo que está grávida. chegando a semana de dar contas do que pretensamente trazia na barriga, a senhora diz ao marido que vai ao hospital botar a criança ao mundo. e, passados os dias necessários, aparece em casa com o rebentinho. que entretanto roubara a uma mãe a sério. o lorpa que engoliu em seco nove meses de vida da sua própria esposa, recebe um internético alerta-geral: fora roubada uma criança no hospital onde - julgava ele... - a sua mulher tinha parido. ainda por cima, roubada no mesmo dia em que ele, suposta e galhardamente, havia sido pai. lembrando-se, afinal, de que não dera assim tanto de si para aquela vida nova, vá de investigar a coisa no hospital. e descobre que a sua esposa não tinha estado internada e não havia registo algum desse contributo para a propagação da espécie. já lá vão três anos.
a coisa acabou em tribunal. e a criança vai ser entregue à sua família de origem, onde passará a desfrutar da companhia de mais seis irmãos...

...assim vão as coisas entre nós.


domingo, 11 de março de 2007

os antergos (2)


é possível seguir a prática da trepanação desde o chamado Neolítico, mais concretamente desde a "Civilização" Megalítica. a trepanação é uma operação de cirurgia pela qual o operador retira uma rodela ou um quadrado de osso do crânio, deixando o encéfalo em contacto com a pressão atmosférica. se esta operação for feita em vida do paciente, o osso vai regenerar, tendendo a tapar de novo a abertura; se o paciente não sobrevive à intervenção, ou se esta for feita no cadáver, não há regeneração do osso e a abertura fica como foi feita.
conhecemos exemplos dos dois casos: crânios com e sem sinais de regeneração óssea.
como interpretamos essa realidade, tendo em conta que foi feita em era tão recuada?
a maioria acha que os nossos antigos pensavam de maneira diferente de nós. que faziam essas operações com um fim mágico. que, desse modo, libertavam a pessoa de maus espíritos.
a tese segundo a qual as trepanações feitas pelos cirurgiões pré-históricos tinham por finalidade a abertura de uma saída para os "maus espíritos" não se deve aos próprios cirurgiões pré-históricos que as fizeram, mas sim a Broca, um médico francês do Séc. XIX, que, tanto quanto eu sei, nunca terá falado com eles.

a prática da trepanação, à qual muitos dos operados sobreviveram, estava muito difundida na França Meridional, na Cultura do Sena-Oise-Marne, no estuário do Tejo e na área geográfica da "Civilização" Megalítica; quero dizer, além do Sudoeste de França, as Ilhas Britânicas e a Região Galaico-Portuguesa.
não vai há cem anos que a trepanação era feita por pastores alemães e montenegrinos nos seus animais com epilepsia e outras disfunções neurológicas. e, pela mesma época, um indígena da Oceania gabava-se de ter feito mais de duzentas trepanações no gado.


José Leite de Vasconcelos escreveu, em 1897: "a hipótese de que com a trepanação pré-histórica se expulsava da cabeça um elemento morbífico não é gratuita, apoia-se em factos de observação moderna. sem dúvida, em certos casos, a trepanação pode ser explicada cientificamente, e produzir efeitos satisfatórios, como, por exemplo, numa fractura de crânio quando os fragmentos cranianos, irritando ou comprimindo uma ou outra zona do encéfalo, causam imediatamente ou passado tempo, quer acidentes epileptiformes, quer fenómenos paralíticos, convulsões, contracturas, estado comatoso ou delirantes perturbações mentais".

a hipótese de Broca, sendo apenas a visão progressista e darwiniana do seu século, rapidamente se tornou certeza sem precisar de mais confirmação. bem disse Wittgenstein que estamos condenados a viver numa jaula de palavras. assim que saem da boca ou das pontas dos dedos, as palavras enredam-nos como teias de aranha, de onde passamos a vê-las como coisas.

que faziam esses cirurgiões pré-históricos das suas trepanações? que instrumentos utilizavam? sobre que porções da massa encefálica intervinham? e o que quer dizer "dar saída a espíritos", "a deuses", "a demónios"? não é desses temas que falam as vozes que atormentam os nossos psicóticos?

a Psico-Cirurgia moderna nasceu na primeira metade do séc. XX, pela mão de Egas Moniz e de Freeman. Egas Moniz mereceu por esse facto receber o Prémio Nobel da Medicina e da Fisiologia. com essa técnica pretendia tratar doentes mentais agressivos e violentes, possuídos por forças biológicas maléficas.
mas que diferença faz falar de "dar saída a espíritos malignos" ou "pacificar alienados agressivos e violentos", como pretendiam os pais da Psico-Cirurgia?

e já nos nossos dias, há cerca de 40 anos, surgiu uma espécie de seita cujos membros se fazem trepanar, no que acham grande expansão das suas capacidades mentais. falam eles da "abertura da terceira visão"...

ao olhar para trás, temos a tentação de interpretar os factos à luz de um paternalismo doentio, segundo o qual nos achamos mais capazes, mais inteligentes, mais hábeis, mais homens e mais mulheres que os nossos devanceiros - de cuja humanicidade duvidamos tanto mais quanto mais nos precederam no tempo.
mas eles, os antigos, não param de nos surpreender.
como dizia Rosalia,

"bem sei que nom hai nada novo
em baixo do ceo"...

sábado, 3 de março de 2007

os antergos (1)

já lá vão alguns anitos, mas ainda me lembro razoavelmente bem dos meus avós. em muitas coisas pareciam-se comigo. em muitas outras tinham mais sabedoria e sensatez. falavam dos avós deles como eu falo dos meus: sempre mais sábios, sempre mais sensatos. em resumo, nós, os do tempo de agora, aprendemos sempre com os que chegaram primeiro.
mas não foi sempre assim. segundo nos dizem os que sabem, tempos houve em que os pais dos pais dos nossos pais eram macacos, desceram das árvores e, contra as leis da lógica, foram trabalhar para atopar alimentos, quando, simplesmente, os teriam ali, à mão de pegar.
eram eles uns trengos, toscos, parolos até dizer chega. incapazes de falar e já esquecidos de guinchar, os nossos antepassados mais antigos nem sequer emitiam sons. faziam uns riscos e rabiscos, que, não sendo entendíveis por nós, tamém muito menos eles os podiam entender.
passavam o tempo todo a caçar ou a recolectar, ou a fazer bifaces ou coup-de-poings. e a fazer filhos mais inteligentes do que eles, que por sua vez, faziam filhos ainda um bocadinho mais inteligentes. até que um dia um filho do filho do filho, já suficientemente inteligente, gritou, quando o pai chegava de uma caçada às cabras: "vou comer uma cabra toda, pra crescer e ser um homem!"
a criatura-pai não cabia em si de parvo com o desplante. porque de macaco a homem vai uma mudança de respeito. posto que ele, macaco, ainda não pudesse saber o que fosse essa coisa de ser homem. duvidou de semelhante paternidade. mirou a parceira de cima abaixo, da esquerda prá direita e da frente para trás e, no seu cérebro incapaz de ir mais além, imaginou que um ser sobressímio se havia aproveitado dos sonhos da sua consorte, enquanto havia durado a caça às cabras . mas não podia pôr na ordem aquele filho tão inteligente que até já era capaz de botar faladura.
e como ele, pai, ainda não era capaz de falar, ficou calado. envergonhado, botou fora os coup-de-poings que tinha feito e voltou para a vida de macaco.

sexta-feira, 2 de março de 2007

as causas das coisas

admiro-me, sinceramente, com as descobertas da ciência. não falo da tecnologia, refiro-me à ciência. estou estantío, abismado. afinal, o mundo não foi criado do nada pela ação de deus. com uma ingenuidade de morrer, foi criado do nada pelo big-bang. meus senhores, não serão uma e outra teoria a mesma coisa?
deus e big-bang não são duas palavras mágicas, com mesma magia (ou falta dela) e outra tanta hominidade?
o mesmo com a biologia molecular. andam por aí a dizer que a biologia molecular é um passo de gigante na descoberta da origem da vida. será? ou será que estamos exatamente no mesmo ponto? quero eu dizer na minha: o que é que mais uma explicação traz de novo à compreensão?
não avançamos nada em relação ao paradoxo das aulas de filosofia dos meus anos de estudante adolescente: "todas as causas têm uma causa precedente". "nada pode acontecer sem uma causa". "qual foi a causa primeira? "uma causa que não teve causa". "uma causa que é causa de si própria!". "deus!" - dizem uns. "o big-bang!" - dizem os mais up-to-date. ambos convencidos da mesma coisa: "há uma causa que escapa ao irrevogável destino das causas: terem uma causa". afinal de contas, um privilégio que não o pode ter o universo - vá lá o diabo saber por quê.
perdi tempo demais a descobrir aquilo que os nossos antergos já sabiam de cor e salteado: que o mundo, a natureza, é um mistério, um acontecimento por si mesmo, uma inteligência intrínseca e interna, um conjunto coerente de leis e de destinos. e que nós, os humanos, não temos inteligência que chegue para o abarcar. nem sequer topamos (eu também não) que tudo se resume a Einstein, mais coisa menos coisa: E=mc2. e desta equação, que não tem pai nem mãe, que existe porque sim, deriva tudo quanto há para derivar: mais matéria, menos energia; menos energia, mais matéria. desde sempre e para sempre.
chega para dar razão aos antigos, aos que viam na natureza a verdadeira mãe. e que, candidamente, lhe prestavam o devido carinho e lhe pediam abrigo e proteção.
não avançámos nada. estamos no mesmo sítio. só inventámos palavras novas.
e já nem sequer somos feiticeiros, porque já não passamos de aprendizes.